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Bem-estar pode significar produtividade, mas esse não deve ser o objetivo

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Foto: reprodução

Luma Bonvino, de São Paulo (SP)

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Não é invenção da atualidade, romance, tampouco utopia. O bem-estar animal, amplamente difundido na esfera teórica, ganhou espaço nos últimos anos em uma soma entre divulgação das informações produtivas e redes sociais, fortalecido pelo apoio e voz dos consumidores, elo essencial quando se fala em decisor da compra. Com o advento do termo, programas específicos de criação foram originados, lotes específicos de compra dedicados aos que se importam com esse critério produtivo e até iniciativas nas redes supermercadistas. Aos que acreditavam em modismo, o erro; aos que juravam tendência futura, o atraso; aos que vem se preocupando com o assunto, mérito. Não é fácil transformar culturas ou modular sistemas produtivos, mas, quando se tem um objetivo, aliado à ciência, esse trabalho pode ser desenvolvido e saldar positivamente no fim das contas.

O conceito, que recebe grande atenção também do ponto de vista científico, já era definido, em 1995, por Rollin, considerado um dos três maiores desafios confrontando a agricultura nos últimos anos, ao lado das questões ambientais e segurança alimentar. Em suma, o processo de produção precisa ser ambientalmente benéfico, eticamente defensável, socialmente aceitável e relevante aos objetivos. Sobre todas as coisas, porém, o bem-estar animal precisa ser feito simplesmente porque é bom. Essa é a definição elaborada pelo professor da Universidade Estadual Paulista, Mateus Paranhos.

De acordo com ele, é importante incialmente pensar que o tema não se refere somente ao manejo, mas impacta em vários elementos. Não somente no cenário social, que envolve ética, política, ciência, economia e cultura, como menciona a própria OIE, mas, fundamentalmente, compreende cinco tópicos: nutrição, ambiente, saúde, comportamento e o que sentem os animais. “A questão do bem-estar está inserida em um contexto produtivo que envolve as questões nutricionais, sanidade, produtiva, ambiente, isso com elementos do clima, conforto térmico, piso, toda a parte de comportamento, associado a aspectos de competição, relações sociais entre os próprios bovinos”, enumera e exemplifica: “A sede causa desidratação, mas o pior é a sensação de sede, algo natural, mas quando não consegue saciar, o animal desenvolve um estado mental muito negativo de frustração, ansiedade ou até desesperança, e é nesse cenário complexo que a análise do bem-estar está se orientando, com reflexo diretamente na economia do negócio. Um problema de saúde não afeta somente o bem-estar animal, já que para a cura há um custo, e se não curar tem o ônus em perda da resposta produtiva”, descreve Paranhos sobre a relevância do tema, em uma visão ampliada.

O professor, pós-doutorado em Bem-Estar Animal na Universidade de Cambridge, acredita que essa ideia, apesar de ter os primeiros teóricos em 1995, ainda é relativamente nova e ainda se está em processo de “cair a ficha”, entretanto, é claro que alguns produtores estão percebendo que por razões óbvias entender é a melhor estratégia de tratar o tema.

Carmen Perez, da Fazenda Orvalho das Flores, foi uma entre esses profissionais que preferiu olhar com outros olhos sua produção. “Desde que me mudei para a fazenda o manejo me incomodava profundamente. E quando comecei a trabalhar lá, me deparei com ambientes de gritaria, uma maternidade com vários vaqueiros e cavalos. Quando vinha a vaca eles falavam “segura, segura, segura”, eu ficava assustada, mas, como não sabia outra forma de trabalhar, não conhecia o diferente, demorei alguns anos para entender o que era esse diferente”, menciona a pecuarista.

Até que um encontro com Elvécio Algeo, em São Miguel do Araguaia (GO), em busca de um novo gado, revelou um novo significado de produzir. “Ele mudou meu rumo. Quando chegamos em sua fazenda, estavam acasalando vaca parida e a gente sentou muito próximo, com elas passando com tranquilidade. Era uma época em que gado nelore era gado louco. Depois, passei na maternidade e não usavam laço. Após esse aprendizado, cheguei na fazenda e consegui o contato do professor Mateus Paranhos e marquei o primeiro curso. De lá para cá, são dez anos fazendo esse trabalho”, relata Carmen.

Assim, conforme determina, esse não é um trabalho pontual, as boas práticas são um trabalho eterno. “Não adianta eu chegar como gestora e falar: vamos fazer um teste desmama lado a lado, manejo do curral e pronto. É uma mudança de mentalidade, de comportamento, e a gente está trabalhando com pessoas, é necessário justamente desenvolver esse lado no vaqueiro. A vida inteira ele trabalhou de um jeito. Como convencer a trabalhar diferente?”, indaga, mas traz respostas de que sim, é possível mostrando o valor dessa mudança, que bem-estar animal também trará benefícios à vida pessoal, gerando menos stress, menor insegurança e medo no trato com animal, comprovando que o trabalho está diretamente ligado à gestão de pessoas.

A pecuarista, além de lidar com seus colaboradores, também vem mudando práticas na lida, ao lado do professor Mateus Paranhos, a qual é parceira desde o início dos trabalhos de bem-estar. “No lugar de marcar a fogo um brinco de manejo, com 97% de retenção. Cada queimada a menos é uma agressão a menos”, cita o professor como uma das mudanças na Fazenda Orvalho, incluindo ainda data de nascimento também a inclusão de cor do brinco. Esse foi apenas um dos temas, mas uma série deles foram modificados. E isso não é sinônimo de dificuldades no trabalho: “Nada que complique a vida dos vaqueiros porque sabemos que, caso contrário, isso não será sustentável. E não tem pequena ou grande propriedade, em todos os casos é possível fazer”, diz Paranhos, categórico, com experiência de causa. Ele estuda o tema desde sua formação em zootecnia, na década de 80, acompanhando vários desdobramentos na cadeia produtiva, incluindo o projeto Garantia de Origem. 

Entretanto, Carmen reitera que mesmo com essa ampla bagagem, há um compromisso de tudo o que é realizado na Fazenda Orvalho é replicável no Brasil inteiro, porque “isso não é romance, é do que eu vivo”, frisa. Assim, Paranhos encerra: “O ganho econômico é uma consequência do bom trato, não pode ser o objetivo principal. O bem-estar tem que ser realizado porque é bom e ponto”.