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Contra ou a favor: terceirização da inspeção sanitária é uma boa ideia?

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Foto: reprodução

Natália Ponse, da redação

natalia@ciasullieditores.com.br

De um lado a alegação de falta de pessoal público para atender demanda, de outro a preocupação de até onde os profissionais terão autonomia para confrontar quem paga o seu salário. A inspeção e a fiscalização dos produtos de origem animal, tanto do ponto de vista industrial quanto sanitário, são obrigatórias no Rio Grande do Sul (para produtos comestíveis e não comestíveis). O Projeto de Lei nº 125/2017, que atualiza informações sobre estes serviços, está sendo alvo de debate no setor por permitir a terceirização da inspeção sanitária nas indústrias frigoríficas.

A justificativa para a medida, segundo o projeto de lei, é o aumento da capacidade e do potencial da vigilância sanitária e epidemiológica do Estado, além de “aumentar a garantia da qualidade e inocuidade dos produtos de origem animal colocados à disposição dos consumidores, com o objetivo de fortalecer a fiscalização e a inspeção, além da introdução de ferramentas modernas de avaliação, de conformidade com os processos e os produtos de origem animal, por meio de auditorias realizadas no sistema  – auditoria externa –, visando, ao fim e ao cabo, à melhoria contínua no sistema de inspeção e fiscalização”.

O documento reforça que os profissionais habilitados para realizar o serviço terceirizado devem possuir registro dos profissionais no Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV), assim como capacitação teórica e prática específicas. O projeto foi sancionado em 21 de agosto.

O Fundo Estadual de Sanidade Animal (Fundesa) foi um dos apoiadores da proposta desde o desenvolvimento até a sua aprovação. De acordo com o presidente do órgão, Rogério Kerber, “a possibilidade criada com a aprovação do projeto não se trata de terceirização e, sim, delegação de uma atividade específica (inspeção), e não da fiscalização agropecuária, esta sim, atividade típica de Estado, com quem permanecerá”.

Ele ainda completa que o apoio à iniciativa se deu embasado em orientação e determinações da própria Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e pela experiência de dezenas de países desenvolvidos que já adotaram a prática de delegar a inspeção de produtos de origem animal a profissionais privados.

Sobre os treinamentos, Kerber reforça: os profissionais atuarão dentro de um sistema oficial, conceito já utilizado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA, Brasília/DF), com a habilitação de profissionais privados para a realização de testes de brucelose e tuberculose, dos médicos-veterinários conveniados, colocados à disposição do MAPA pelas prefeituras municipais: “Também, as agroindústrias estarão inseridas num programa de capacitação, envolvendo os seus técnicos e colaboradores, nas áreas de inspeção, autocontroles, boas práticas de fabricação, fortalecendo o sistema de forma ampla, com a valorização do papel estratégico dos fiscais estaduais agropecuários, por via de consequência, com ganhos para todos, em especial à saúde pública”.

Antes contrário à decisão, o Sindicato dos Médicos Veterinários no Estado do Rio Grande do Sul (Simvet-RS) mudou sua postura e decidiu entrar em acordo com o projeto, desde que feitas algumas alterações: a criação de um comitê de técnicos especialistas na área de produção de origem animal que não sejam ligados ao serviço público em qualquer uma das esferas, seja municipal, estadual ou federal; que o médico-veterinário que irá exercer a inspeção só possa ser removido do seu local de trabalho mediante pedido dele próprio ou com autorização do fiscal agropecuário (que vai exercer a fiscalização dentro da inspeção); e, sobre o salário, o Simvet/RS questiona a necessidade de regulação para o cumprimento da lei que estabelece a manutenção do salário mínimo do profissional contratado para exercer a inspeção, entre outros detalhes do tipo.

O vice-presidente do sindicato, Ricardo Capelli, reforça também a preocupação com os custos para as pequenas agroindústrias gaúchas, especialmente as inclusas no Programa Estadual da Agricultura Familiar. “São mais de 200 agroindústrias que estão em funcionamento e que recebem a inspeção gratuita dos municípios. Nosso questionamento é como se dará o atendimento a estes pequenos empreendimentos, se terão que investir recursos na inspeção e se eles poderão arcar com estes custos”, destaca.

A presidente do Simvet-RS, Angelica Zollin, salienta que não haverá problemas com relação à cadeia produtiva, argumentos apontados pelas entidades contrárias. “Para a classe veterinária foi dada uma segurança maior pelas alterações que propomos e tivemos vários acenos referentes a quem administra estes veterinários. Não acredito que os terceirizados possam ser facilmente manipuláveis, realmente não vejo desta forma, pois eles serão treinados e com isso estarão qualificados como os servidores do serviço oficial”, diz.

Do outro lado da mesa. O debate ficou acirrado por conta das posições contrárias ao projeto, agora Lei. A Associação dos Fiscais Estaduais Agropecuários do Rio Grande do Sul (Afagro-RS), por exemplo, acredita que entregar para a iniciativa privada a responsabilidade pela inspeção dos frigoríficos e matadouros representa um conflito de interesse com a função de assegurar a segurança alimentar, que deve ser garantida pelo Estado.

A presidente da associação, Angela Antunes de Souza, destaca que se terceirizados os médicos-veterinários perdem o poder de “polícia administrativa”, ficando sujeitos à pressão por parte das indústrias, diretamente responsáveis pela sua remuneração. “Temos como referência outros Estados que já adotaram sistemas semelhantes, como Santa Catarina, Paraná e Espírito Santo, e os exemplos não são positivos. Uma situação relatada a nós pela Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (Apaco) traz um dado preocupante: o mesmo modelo adotado lá é responsável pelo fechamento de pelo menos 20 agroindústrias familiares só no oeste de Santa Catarina nos últimos 4 anos, período que a nova regra está em vigor no Estado”, exemplifica.

Mesmo que o projeto tenha sido aprovado com uma emenda que retira da regra as agroindústrias familiares, Souza indica que caso não consigam o registro ressalvado na legislação, esses produtores deverão arcar com os custos da inspeção em seus estabelecimentos, “um gasto não previsto em seus orçamentos e com o qual muitos não contam hoje”

Para os profissionais representados pela Afagro-RS, a preocupação é com relação à manutenção da carreira, conquistada a partir do entendimento da importância do trabalho prestado pelos fiscais estaduais agropecuários à população. “Temos inclusive colegas aprovados em concurso para a área e que aguardam chamada, fato ignorado pelo Governo Estado ao apresentar essa proposta”, critica a presidente da associação.

A delegada Sindical do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários do Rio Grande do Sul, Consuelo Paixão Côrtes, destaca que o projeto foi aprovado sem ampla discussão com os próprios servidores, consumidores e órgãos de defesa. “Realmente não entendemos a pressa em aprovar algo tão grave e que precisaria de muita discussão sobre o tema. O Estado tem a obrigação de prover saúde à população mesmo em dificuldades financeiras”, pontua.

Consumidor. A pauta também inclui os efeitos dessa decisão para o consumidor. A delegada Sindical acredita que há o risco de os consumidores gaúchos na compra de produtos sem a devida inspeção, podendo aumentar o surto de infecções alimentares. Já para a presidente da Afagro, há um grande risco de que o interesse econômico das empresas esteja acima do interesse da coletividade. “Muda a regra para o produto que é produzido para dentro do Rio Grande do Sul, que deixa de ter o fiscal estadual agropecuário, que pode ser considerado ‘os olhos’ da população e do Estado, dentro dos frigoríficos. Muitas vezes os fiscais estaduais agropecuários inutilizam toneladas de produtos impróprios ao consumo que, mesmo estando nestas condições, estavam sendo levados ao comércio pelos seus fabricantes”, defende Angela Antunes de Souza.

Aqueles que são pró-terceirização acreditam que estas análises não são válidas. “Hoje são inúmeros os produtos que saem dos estabelecimentos sem controles, e que mesmo assim são comercializados, com o motivo de não haver serviço oficial suficiente. Agora esta desculpa não poderá ser mais utilizada”, defende o presidente do Fundesa, Rogério Kerber.

Alternativa. Muitos dizem que não basta criticar, é preciso apontar um caminho diferente. Na opinião da representante da Afagro, uma alternativa seria a nomeação dos aprovados em concurso público para a área, a fim de atender a demanda e permitir uma maior qualificação do trabalho prestado pelos fiscais estaduais agropecuários. “É importante salientar ainda que, pela nova regra aprovada, o Estado abre mão de 30% da receita das chamadas taxas de inspeção, as quais geram atualmente em torno de R$ 10 milhões ao ano. A alternativa, portanto, seria nomear os novos fiscais com o uso desta receita”, indica Souza.

A Afagro protocolou uma representação no Ministério Público no início de setembro questionando a constitucionalidade da proposta. “Embora tenham sido aprovadas modificações nas relações trabalhistas, no âmbito do serviço público não é permitida a terceirização de atividade fim, o que torna essa proposta inconstitucional. No Espírito Santo, o entendimento do Ministério Público corrobora nossa defesa e nos dá esperança de reverter o quadro, em defesa da saúde pública e do serviço público de qualidade”, diz.

Já Consuelo Paixão Côrtes acredita que deve ser criado um fórum de discussão com participantes da cadeia produtiva, MAPA e outros interessados para elaborar uma proposta viável que atenda ao País sem prejudicar os consumidores brasileiros. “Solicitamos concurso público ao MAPA para suprir o quadro de pessoal ininterruptamente. Atualmente temos uma deficiência de pessoal e uma sobrecarga muito grande de trabalho, sem falar dos gestores indicados politicamente os quais são um desastre para qualquer gestão séria”, finaliza.