Natália Ponse, da redação
Um dos principais alvos de crítica quando se fala em proteína animal é a forma de produção. Muitas vezes baseados em inverdades, militantes questionam sobre a engorda, uso de medicamentos e formas de abate. Um novo conceito, baseado em produção por células tronco e outras alternativas, promete atender aos clamores dessas pessoas: a carne produzida em laboratório.
A ideia surgiu em 1894 quando o químico francês Marcellin Berthelot declarou que os ovos e a carne poderiam ser produzidos de maneira completamente diferente dos processos tradicionais. A realização só aconteceu em 2013 quando o professor Mark Post, da Universidade de Maastricht, na Holanda, trabalhou com multiplicação de células animais, que aglomeradas se transformaram em fibras, produzindo o primeiro hambúrguer em laboratório.
Segundo relatos, o hambúrguer é vermelho intenso e depois de submetido ao processo de cocção tem a aparência de um produto caseiro. Saindo da sala cheia de substâncias, pipetas e recipientes, e caminhando rumo ao mundo dentro da porteira: seria esta uma ameaça à produção tradicional? A resposta é não, e a explicação vem a seguir.
Em primeiro lugar, para se ter uma ideia, a Hampton Creek, startup do Vale do Silício, que está em negociação para licenciar sua tecnologia de carne cultivada em laboratório, quer trabalhar junto a algumas das maiores empresas de carne do mundo. “É improvável que a maioria dos consumidores escolha constantemente alternativas como estas para frango, carne bovina, suíno e frutos do mar. Queremos trabalhar com algumas das maiores empresas no Brasil, em toda a América Latina, Ásia, Europa Ocidental e em outros lugares, para encontrar uma solução para essas realidades econômicas e culturais e também trazer a eficiência da produção industrializada às carnes cultivadas em laboratório”, justifica o CEO da companhia sediada em São Francisco (EUA), Josh Tetrick.
A relação econômica seria a seguinte: a Hampton Creek ofereceria licenças comerciais de produtos aos processadores de carne por um período pré-acordado, em troca de royalties e pagamentos antecipados quando determinados marcos fossem atingidos. A principal justificativa dessa e de outras empresas que estão apostando neste nicho (são mais de cinco) é a já conhecida demanda alimentar em 2050, que prevê 10 bilhões de pessoas em todo o globo.
“Com plantas que fornecem nutrientes para células de animais para crescer, acreditamos que podemos produzir carne e frutos do mar que são mais de dez vezes superiores em eficiência do que o abatedouro de maior volume do mundo. Nossa abordagem será transparente e inquestionavelmente segura, livre de antibióticos e tem um risco muito menor de doença transmitida por alimentos. Tudo isso sem confinar ou abater um único animal e com uma fração das emissões de gases de efeito estufa e uso de água”, pontua Josh Tetrick.
Faz apenas alguns meses que a Hampton Creek anunciou sua entrada no mercado de carne cultivada em laboratório, em junho, embora já estivesse trabalhado em soluções de carne há mais de um ano. A empresa entende que “não poderá alcançar o sucesso sem a ajuda da indústria da carne”.
O diretor de Agricultura Celular da Hampton Creek, Eitan Fischer, destaca que o primeiro produto comercial, que provavelmente será de carne de frango, deverá ser lançado no final de 2018. “O setor de serviços alimentícios é uma via mais provável que o varejo, mas ainda não chegamos a uma decisão definitiva sobre isso”, fala.
No entanto, um dos principais entraves para a carne de laboratório ainda é o preço. Mesmo acreditando no consumo em massa lá no futuro, os custos de fabricação continuam a ser um obstáculo significativo, de modo que a empresa prevê que o primeiro produto deva chegar ao mercado custando cerca de 30% mais que a carne convencional. “Levará uma quantidade considerável de tempo, mas acreditamos que seja possível e os preços competitivos são a única maneira desse modelo funcionar para consumidores em todo o mundo. Nossa visão é que esteja disponível em restaurantes, dos estabelecimentos com estrelas Michelin aos restaurantes de fastfood”, complementa Tetrick.
Na boca do vendedor todo produto é ótimo. Por isso, a feed&food procurou o Instituto de Tecnologia de Alimentos (ITAL) da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo (SAA, São Paulo/SP) para entender, com os pés no chão, qual o impacto da carne de laboratório na produção animal tradicional e no consumo global. “Ainda não dá para saber se a carne produzida em laboratório trará ou não benefícios para a saúde. Como toda novidade é preciso observar os seus efeitos ao longo do tempo, talvez por algumas gerações”, reforça o pesquisador José Ricardo Gonçalves.
Do ponto de vista de fabricação, ele complementa, o hambúrguer é uma carne moída adicionada de alguns ingredientes e condimentos que mantém as suas partes aglutinadas. Além da textura, o profissional afirma ser importante que se desenvolva o sabor e a suculência relacionados com a gordura, dentre outros atributos de qualidade. “Isso poderá levar mais algum tempo”, diz.
Supondo que a continuidade da pesquisa produza resultados amplamente favoráveis, algumas mudanças na cadeia produtiva de proteína animal poderiam ocorrer (nem todas previsíveis, Gonçalves lembra). “Talvez o questionamento mais imediato fosse justificar a existência dos abatedouros, uma vez que seriam substituídos pelos laboratórios. Mas, havendo produção de carne a indústria de processamento e seus fornecedores continuariam preservados, desde que houvesse mercado para os seus produtos”, prevê.
De imediato, o pesquisador do ITAL acredita que a ideia parece agradar mais os defensores dos animais, pela mudança de tratamento, e os do meio ambiente, que visualizam uma oportunidade para reduzir os gases de efeito estufa e o consumo de água na produção de carne. “O uso efetivo desta carne, tal qual conhecemos, me parece algo distante, uma vez que textura, suculência, aroma e aparência, atributos essenciais para a aceitação, requerem que na composição da carne, a gordura e o tecido conjuntivo estejam nas proporções e localização análogas à da carne proveniente dos animais, assim como as proteínas aquossolúveis que incluem a mioglobina, também apresente as mesmas características estruturais que são presentes nas carnes”, confirma e finaliza: “Os desafios são muitos para se imitar a mãe natureza!”.